* Leandro Fidelis
(leandro@radiofmz.com.br)
Biblioteca ambulante, baluarte da cultura de Venda Nova. Não faltam atribuições para Benjamin Falqueto que, aos 84 anos, não descansa quando o assunto é manter vivas as tradições dos antepassados italianos. O autor do Hino Municipal e de tantos poemas que reverenciam o lugar onde vive agora se dedica a resgatar em um livro antigas “cançonetas” cantadas pelos colonizadores. Intitulado “Storia Cantata di Venda Nova do Imigrante”, o projeto promete ser um legado para as futuras gerações, já que muitas músicas estavam esquecidas na memória dos moradores mais antigos. A data do lançamento será divulgada em breve.
Ao todo serão 104 músicas tradicionais do Vêneto, região de origem da maioria dos colonizadores, com suas respectivas partituras. São canções que têm como pano de fundo o amor à pátria, namoro e, claro, vinho, a bebida indispensável nas cantarolas que, dizem, até afina a voz. Ao longo do tempo, essas “cançonetas” ganharam outras versões, e o que o livro se propõe é registrar a melodia original.
Um CD com trechos de cada música vai acompanhar o material. A gravação conta com a colaboração de membros do Coral Santa Cecília, do grupo Toni Boni e dos “guardiões da música”, título dado pelo autor aos irmãos Jair e Angelina Brioschi, Toni Brioschi e Romualdo Falqueto. Desde setembro, essas pessoas têm ido várias vezes ao estúdio de Luciano Stelzer, na Tapera, emprestar sua voz para imortalizar o cancioneiro local.
“Venda Nova é a terra da música, sempre cultivamos a arte de cantar e estava preocupado com o que estava se perdendo. Canto todas e nem sei dizer qual é a minha preferida”, conta o autor do livro.
A produção mobiliza pessoas ligadas à cultura local, da pesquisa à edição. Denis Falqueto, filho do maestro Romualdo Falqueto, atualmente em Belo Horizonte, por exemplo, utilizou um moderno programa de computador para organizar as partituras. “Meu interesse é registrar, de uma maneira mais formal, as músicas que nossos antepassados trouxeram.”
Segundo Denis, Romualdo e Benjamin enviavam as partituras pelo Correio ou email. Depois de digitalizadas, ele mandava o rascunho de volta para correção. O processo levou pelo menos dois anos. “Meu pai teve que escrever boa parte das músicas. Por sorte, eles acharam algumas partituras em outros livros e isso ajudou bastante”.
Para o integrante da primeira formação do Toni Boni, foi uma experiência gratificante colaborar com o projeto. “Espero que este trabalho traga às pessoas a mesma alegria que me deu em realizá-lo”, disse Denis.
Quem também está colaborando é o desenhista Maicon Sullivan, de Venda Nova, que assina a ilustração da capa.
O livro tem apoio do Sebrae/ES, do empresário Nelson Minet e do Departamento Municipal de Cultura, que prevê uma tiragem inicial de 1.000 exemplares para distribuição gratuita em associações italianas, institutos de cultura e corais vênetos. De acordo com a coordenadora do Departamento, Claudete Bellon, o projeto só depende agora do término das gravações das músicas em estúdio.
A música na vida dos imigrantes
As canções vênetas estão presentes em Venda Nova do Imigrante desde o início da colonização. Quando vieram para cuidar das lavouras de café, em substituição da mão-de-obra escrava, era cantando que mantinham um vínculo com o país de origem.
Assim, “Quel Mazzolin di Fiori” e “Moretina Bella Ciao”, só para citar duas das mais populares, eram trilha sonora para colher café, fazer comida, após a missa e nos jogos de bola de pau. Quando acabavam as partidas, se cantava até escurecer. Atualmente, a famosa “Missa das Dez”, no lajão da Igreja Matriz, é a mostra de um passado ainda vivo no presente em cada canto da cidade.
E se antes não existia CD e muito menos computador, alguns moradores eram os responsáveis em manter essas cançonetas vivas na colônia italiana. “Lembro dos irmãos Angelim, Elói e Gabriel Falqueto cantando na lavoura de café em Bananeiras há mais de 60 anos. A voz do trio ecoava no vale e se escutava de longe”, recorda Benjamin.
Outra figura marcante era o já falecido “Beppeta”, pai do Romualdo, um dos personagens lembrados na primeira parte do livro. Quando se juntavam ele e os irmãos Dionísio e Vicente, era certo cantar uma música. “Ele era animado em qualquer ocasião”. Benjamin também destaca a importância dos Caliman, Altoé, Sossai e Lorenção na música Sacra.
Já os Brioschi, citados no início desta matéria, tiveram a honra de conviver com Pierina Falqueto Brioschi, falecida em 94, que colocou esses descendentes em contato com a música vêneta. Segundo os “guardiões da música”, ela era afinada e gostava de reunir os filhos e sobrinhos para ensinar a cantar.
“Minha mãe não tinha estudos, mal sabia ler o seu nome, mas era um crânio. Tudo o que tenho na memória devo a ela, que cantava o dia inteiro enquanto tratava as galinhas, fazia comida…”, lembra o agricultor Jair Brioschi, 64, que se emociona quando canta em dialeto (Veja vídeo abaixo).
Jair faz questão de cantar tudo o que aprendeu. Tanto que ele, alguns irmãos e primos formarão o “Coral da Família Brioschi” neste fim de semana para se apresentar na Festa da Imigração Italiana em Jaguaré, no Norte do Estado.
Irmã de Jair, Angelina Brioschi, a “Tia Dindinha”, 85, é uma lenda viva na comunidade. Afirma saber 74 músicas completas. Sempre muito vivaz, ficou 12 anos no Coral Santa Cecília e conta que chegou a adoecer quando os seus pais e irmãos mais velhos a impediram de continuar ensaiando, tamanho amor pela música.
“Eu tinha aquele amor em aprender. Meus avós me ensinavam a cantar e nem precisavam explicar o significado das músicas, porque eu entendia tudo”, relembra Angelina. Ela lembra que, quando criança, saía da Providência a pé para Lavrinhas no escuro cantar e, de duas a três vezes por semana, ia para casa de Domingos Carnielli aprender “Ave Maria” em italiano. A anciã se orgulha de ter participado de um documentário exibido na França, na Alemanha e na Itália.
O primo Antônio, o “Toni”, 81, lembra também com muito saudosismo os sábados onde a principal diversão era cantar. “Eu gostava daquilo”, conta uma das vozes mais conhecidas da cantarola de Venda Nova. Por ironia, Seu Toni operou um nódulo na garganta há um mês e ainda se recupera, por isso não foi possível gravar o seu vídeo. “O médico jurou que eu vou poder cantar de novo, mas não sei se igual eu cantava.”
Toni está desde os 14 anos no Coral Santa Cecília, canta sem letra e acha importantíssimo o registro das músicas no livro.